Saberes populares de cuidado


Os saberes populares e as práticas tradicionais de cuidado constituem um patrimônio cultural e sanitário fundamental no contexto brasileiro. Enraizados em matrizes indígenas, africanas e europeias, esses saberes articulam dimensões espirituais, simbólicas, ecológicas e sociais, sendo transmitidos oralmente entre gerações.

Os saberes populares de cuidado no Brasil resultam de um processo histórico de encontro e sincretismo entre três grandes matrizes culturais: a indígena, a africana e a europeia. Os povos indígenas desenvolveram sofisticados sistemas de cura, baseados na relação com a natureza, no uso de plantas medicinais, nos rituais de pajelança e na compreensão espiritual do adoecimento. A tradição africana, trazida pelos povos escravizados, incorporou rezas, banhos, defumações, uso de raízes e folhas, além da cosmologia dos orixás e entidades espirituais como mediadores do equilíbrio vital. A influência europeia introduziu práticas de curandeirismo camponês, benzeduras e partejos, que se amalgamaram às demais em um corpo híbrido de práticas comunitárias.

Essas práticas, transmitidas oralmente, constituem formas próprias de interpretação da saúde e da doença, compreendendo o ser humano como unidade corpo-espírito-natureza. Estudos etnográficos mostram que a prática da benzedura, por exemplo, envolve rituais de proteção, gestos simbólicos e uso de orações, assumindo papel fundamental na coesão social e na espiritualidade das comunidades.

A medicina popular brasileira compreende um conjunto plural de práticas e conhecimentos de cuidado fortemente enraizados nas comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas e urbanas periféricas. Essas práticas – como o uso de ervas medicinais, rezas, benzeduras, partejos tradicionais, banhos, garrafadas e rituais – constituem um modo de atenção integral à saúde que ultrapassa a dimensão biológica e valoriza vínculos comunitários, espiritualidade e pertencimento territorial.

A relevância dos saberes populares para a saúde pública brasileira se evidencia tanto por seu alcance social quanto por sua coerência com os princípios de integralidade, humanização e equidade, norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, historicamente, esses saberes foram desvalorizados, classificados como curandeirismo e marginalizados pelo modelo biomédico dominante.

A partir da Constituição Federal de 1988 e da criação do SUS, abriu-se um novo campo de diálogo entre a biomedicina e os sistemas tradicionais de cuidado. Políticas como a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) passaram a reconhecer esses conhecimentos tradicionais.

A relação com os serviços de saúde, especialmente o SUS, é marcada por tensões e avanços. Experiências relatadas mostram que, em territórios da Estratégia Saúde da Família (ESF), práticas como a benzedura e o uso de plantas medicinais são reconhecidas pelas comunidades e, em alguns casos, dialogam com os serviços de saúde.

Pesquisas realizadas em territórios da ESF apontam que a população recorre simultaneamente aos serviços de saúde e às práticas populares. Em áreas rurais e ribeirinhas, o uso de ervas e a busca por benzedeiras continuam a ser recursos primários de cuidado. Essa dupla circulação de saberes evidencia que o cuidado em saúde no Brasil é plural, dinâmico e adaptativo. Contudo, o diálogo entre o saber técnico-científico e o saber popular ainda é marcado por tensões, preconceitos e hierarquizações de poder.

Entre os desafios estão o preconceito cultural, a ausência de reconhecimento formal para práticas tradicionais (como partejar e benzer), a dificuldade de articular saberes populares às políticas públicas e o risco de apropriação indevida dos conhecimentos coletivos. Os saberes tradicionais de cura e cuidado não apenas ampliam o acesso e a resolutividade do sistema de saúde, mas também fortalecem a identidade cultural e os vínculos comunitários.

A Educação Popular em Saúde (EPS) surge como uma estratégia essencial para mediar o diálogo entre os saberes científicos e populares, valorizando a experiência comunitária e promovendo a autonomia dos sujeitos. Inspirada no pensamento de Paulo Freire, a EPS reconhece que o processo educativo é também político e visa à libertação das consciências e à transformação social. Freire concebia a educação como uma prática dialógica e libertadora, baseada na problematização da realidade e na conscientização — processo pelo qual o indivíduo se torna sujeito ativo de sua história e de sua saúde.

Nos serviços de atenção básica, a EPS se manifesta em práticas como rodas de conversa, oficinas comunitárias, mutirões e grupos de autocuidado. Esses espaços possibilitam a troca entre profissionais e usuários, superando relações verticais e fortalecendo vínculos terapêuticos.

A autonomia dos sujeitos no cuidado é um dos princípios centrais tanto dos saberes populares quanto da EPS. Em oposição à lógica biomédica centrada na prescrição e no controle, as práticas populares buscam empoderar o indivíduo e a comunidade no processo de cuidar-se e cuidar do outro.

A integralidade do cuidado, princípio do SUS, só pode ser plenamente alcançada se incorporadas as dimensões culturais, espirituais e territoriais da saúde. Nessa perspectiva, o encontro entre saberes populares e científicos é um ato político e pedagógico — não uma simples soma de práticas, mas uma reconstrução compartilhada de sentidos e responsabilidades.

Apesar dos avanços, persistem desafios. Ainda há lacunas de reconhecimento oficial de práticas ligadas a comunidades tradicionais, como a benzedura e o partejar, além da dificuldade de registrar e proteger o conhecimento coletivo frente à exploração comercial. Também permanecem barreiras de preconceito cultural e desigualdade de acesso, que dificultam a plena articulação desses saberes com a rede do SUS.

No cenário atual, o fortalecimento dos saberes tradicionais exige políticas de valorização, formação de profissionais de saúde abertos ao diálogo intercultural e mecanismos de proteção dos direitos coletivos das comunidades detentoras desses conhecimentos. A integração entre saberes populares e serviços de saúde pode ampliar a resolutividade do SUS, respeitando a diversidade cultural e garantindo um cuidado mais humano, integral e próximo do território.