Saberes de Cura Afro-Brasileiros

Os saberes e práticas de cura de matriz africana constituem um dos pilares mais duradouros e resilientes da cultura brasileira. Desde o período colonial, quando povos africanos escravizados trouxeram consigo complexos sistemas de cuidado espiritual e corporal, essas práticas se articularam com os saberes indígenas e populares, conformando um vasto campo de terapias tradicionais que ainda hoje orientam o itinerário terapêutico de milhões de brasileiros. Tais saberes — expressos nos terreiros de candomblé e umbanda, nas comunidades quilombolas e nas rezadeiras, raizeiras e parteiras — desafiam a hegemonia biomédica ao proporem uma visão ampliada de saúde, que abarca corpo, mente, território e espiritualidade.

Mais do que simples alternativas terapêuticas, as práticas de origem africana representam modos próprios de compreender o adoecimento e a cura, nos quais o ser humano é visto em sua totalidade. Elas revelam uma concepção de saúde que se ancora na harmonia entre o indivíduo e as forças da natureza, reconhecendo o papel do sagrado, da ancestralidade e da comunidade na restauração do equilíbrio vital. Essa visão contrasta fortemente com o modelo biomédico, centrado no corpo físico e na patologia, oferecendo ao mesmo tempo uma crítica e uma complementaridade à racionalidade ocidental.

No Brasil contemporâneo, esses saberes também assumem papel político: resgatam identidades silenciadas, reafirmam o direito à diferença e denunciam as desigualdades raciais e territoriais que ainda atravessam o acesso à saúde. Ao ocupar espaços acadêmicos e dialogar com políticas públicas — a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) e a Política Nacional Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) — os sistemas de cura afrodescendentes não apenas reivindicam reconhecimento, mas propõem um novo paradigma de cuidado, plural e intercultural.

Saberes de terreiro e espiritualidade como terapêutica

As religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, constituem sistemas complexos de cuidado, em que as dimensões espirituais e materiais são indissociáveis. O artigo “O cuidado em saúde promovido pelas religiões afro-brasileiras” destaca que os rituais, oferendas, banhos, rezas e a incorporação dos orixás funcionam como verdadeiras práticas terapêuticas, destinadas a restaurar o axé — a força vital que sustenta a existência. Nesse contexto, o corpo é visto como canal de energia, e o adoecimento é compreendido como um desequilíbrio de forças espirituais e comunitárias.

No estudo “As práticas de saúde no candomblé”, observa-se que sacerdotes e sacerdotisas exercem papel central no cuidado, combinando o uso de ervas medicinais com prescrições rituais. A defumação, os banhos de folhas e as oferendas são práticas que visam purificar, equilibrar e fortalecer o corpo e o espírito. Os autores enfatizam que tais práticas expressam um conceito de saúde holístico e relacional, em que o cuidado ultrapassa a dimensão individual e se insere em redes de solidariedade e pertencimento.

Essas práticas são também espaços de acolhimento afetivo e espiritual. No terreiro, a escuta, o toque, a palavra e o canto produzem sentidos de cura que envolvem não apenas a resolução de sintomas, mas o restabelecimento da autoestima e do sentido de vida. O estudo de Marques et al. (2020) ressalta que, para muitas pessoas negras, os terreiros representam o único espaço em que sua dor é legitimada sem preconceito, e onde o sofrimento não é medicalizado, mas simbolizado e transformado. Assim, a prática de cura se torna também uma forma de reparação simbólica, resgatando a humanidade de corpos historicamente estigmatizados.

A pesquisa “Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional” mostra ainda que esses espaços desenvolvem uma pedagogia própria do cuidado, em que o aprendizado se dá pela convivência e pela experiência ritual. O terreiro é, portanto, uma escola de autocuidado e coletividade. Ao mesmo tempo, o artigo evidencia os desafios de diálogo com o SUS: o preconceito religioso, a ausência de formação intercultural e o racismo institucional dificultam o reconhecimento desses saberes. Apesar disso, os autores apontam que experiências locais de integração — como consultas mediadas por líderes religiosos, fitoterapia comunitária e acolhimentos espirituais — têm mostrado resultados positivos na adesão e na resolutividade do cuidado.

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Saberes quilombolas e a ancestralidade como cuidado

Nas comunidades quilombolas, o cuidado em saúde está intrinsecamente ligado à ancestralidade, ao território e à natureza. A pesquisa “Saberes de quilombos nas práticas de saúde” evidencia que os quilombolas mantêm uma medicina própria, baseada no uso de plantas medicinais, benzimentos e práticas espirituais transmitidas oralmente entre gerações. O estudo demonstra, porém, que tais saberes são frequentemente invisibilizados pelas políticas públicas, o que limita a integração entre os sistemas tradicionais e a atenção primária à saúde.

O artigo “Itinerários terapêuticos de mulheres quilombolas do norte de Minas” revela que as mulheres quilombolas transitam entre diferentes sistemas de cuidado: recorrem aos saberes populares em situações do cotidiano e à biomedicina em casos de maior gravidade. Esse trânsito demonstra que o itinerário terapêutico quilombola é plural e estratégico, baseado em confiança, acessibilidade e experiência prévia. A autora argumenta que reconhecer essa pluralidade é essencial para construir políticas públicas culturalmente sensíveis.

Outras pesquisas, como “Saberes e práticas populares em saúde na comunidade quilombola de Acauã (RN)”, apontam que a transmissão dos saberes tradicionais é também um ato político e pedagógico. Ao ensinar jovens a identificar plantas, preparar chás e realizar rituais de proteção, as anciãs reafirmam o pertencimento comunitário e a continuidade da cultura. Essa transmissão gera autoestima e sentido de identidade, fortalecendo o tecido social. Ao mesmo tempo, é uma forma de resistência frente à expropriação do território e ao esquecimento imposto pela modernidade.

No artigo “Práticas de cuidado em saúde numa comunidade quilombola do Agreste Alagoano”, os autores observam que o cuidado tradicional não exclui o saber técnico, mas o ressignifica. Agentes comunitários e profissionais de saúde que convivem com os saberes locais relatam maior aceitação e vínculo quando respeitam as práticas ancestrais. As reuniões de grupo, as oficinas de plantas medicinais e as feiras de saberes populares tornam-se espaços de diálogo entre a medicina da terra e a medicina institucional. Essa convivência, ainda incipiente, aponta caminhos para a integralidade do cuidado no SUS, mostrando que o encontro entre diferentes racionalidades é possível quando há escuta e reconhecimento.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Intersecções com o SUS e políticas públicas

Os saberes afro-brasileiros de cuidado têm conquistado crescente reconhecimento no campo da saúde coletiva, especialmente após a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) e a Política Nacional Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF). Políticas que abrem espaço para o diálogo e a valorização de práticas tradicionais. Contudo, a distância entre a formulação dessas diretrizes e a prática cotidiana ainda é significativa, sobretudo em territórios onde o racismo institucional e a precarização do trabalho em saúde limitam o alcance dessas ações.

Os artigos analisados revelam que o diálogo entre as práticas de terreiro e o SUS ainda é frágil e pontual. Muitos profissionais de saúde carecem de formação intercultural e desconhecem o papel terapêutico das religiões afro-brasileiras. Assim, persistem barreiras simbólicas e institucionais que reforçam a hierarquia entre saberes — onde a biomedicina ocupa o centro e as práticas afrodescendentes são tratadas com preconceito. Apesar disso, há experiências exitosas em municípios que incorporaram os saberes populares e as PICS em parceria com terreiros e comunidades quilombolas, promovendo grupos de autocuidado, mutirões de saúde e mapeamento de plantas medicinais.

O artigo “Direito à saúde da população quilombola: entre vulnerabilidade e resistência” ressalta que o racismo estrutural atravessa as relações de cuidado, produzindo desconfiança e exclusão. Entretanto, também identifica um movimento de resistência nos próprios territórios, onde as práticas de cura funcionam como atos políticos de reexistência — formas de afirmar a vida e o direito à diferença. Ao articular cuidado, espiritualidade e território, essas práticas constroem um modelo de atenção que ultrapassa a dimensão clínica e alcança o campo da justiça social.

Por fim, há uma dimensão ética e epistemológica que se impõe: reconhecer os saberes de origem africana é ampliar o conceito de ciência. Eles desafiam a lógica hierárquica do conhecimento e afirmam que a sabedoria do corpo, da erva e da palavra também são formas legítimas de produzir saúde. Ao integrar esses saberes à rede de atenção, o SUS pode se tornar um espaço verdadeiramente plural — onde o encontro entre a racionalidade biomédica e as racionalidades tradicionais produz não apenas cura, mas reconciliação cultural.

Os saberes de cura de origem africana configuram um patrimônio imaterial e epistemológico de enorme relevância para a saúde coletiva brasileira. Mais do que tradições religiosas ou terapias, eles representam modos de viver, compreender e transformar o sofrimento humano em diálogo com o sagrado, a natureza e a comunidade.

A leitura dos artigos evidencia que essas práticas — sejam as rezas nos quilombos, os banhos de folhas nos terreiros ou o uso de plantas medicinais — constituem sistemas terapêuticos completos, sustentados por cosmologias próprias e por uma ética do cuidado coletivo. Nos itinerários terapêuticos da população negra e periférica, esses saberes ocupam papel central, não apenas como recurso de cura, mas como expressão de resistência cultural e de construção de saúde em sentido ampliado.

Reconhecer e integrar esses saberes ao sistema público de saúde não é apenas uma questão de inclusão simbólica, mas de reparação histórica. Trata-se de legitimar a voz dos povos que fundaram o Brasil e de reconhecer que o futuro da saúde depende também da escuta do passado. Trazer o diálogo com as práticas de matriz africana com SUS é construir um modelo de cuidado que celebra a diversidade e restabelece o equilíbrio entre o humano, o social e o sagrado — uma verdadeira medicina da ancestralidade e da vida.