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Movimentos Sociais, Representação Étnica e Saberes Tradicionais

A força da participação social no direito à saúde

Movimentos sociais e a construção democrática da saúde

A história do SUS é inseparável da trajetória dos movimentos sociais. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, articulado nas décadas de 1970 e 1980, uniu profissionais de saúde, sindicatos, pastorais, associações de moradores e organizações comunitárias em torno da ideia de que “saúde é democracia”. Esse movimento foi responsável por transformar a saúde em uma política de Estado baseada na participação popular, e não em um privilégio de poucos.

Com a criação dos Conselhos de Saúde, esse legado foi institucionalizado. Hoje, mais de 98% dos municípios brasileiros possuem conselhos que deliberam e fiscalizam as ações do SUS. Contudo, mais do que estruturas formais, esses espaços representam o espírito vivo da cidadania — lugares onde o conhecimento técnico e o saber popular dialogam, e onde as comunidades encontram voz para reivindicar políticas que atendam suas realidades.

Os movimentos sociais trouxeram para o debate da saúde temas historicamente marginalizados: o racismo, a pobreza, a desigualdade de gênero, a invisibilidade dos povos do campo e das florestas. Assim, a luta pela saúde passou a ser também uma luta por reconhecimento, por território e por dignidade cultural.

 

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Representação étnica, equidade e saberes tradicionais

A diversidade étnica e cultural brasileira é uma das maiores riquezas do país, mas também um dos maiores desafios para a equidade em saúde. Povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas e negras carregam histórias de resistência e saberes que, por muito tempo, foram desconsiderados pelas políticas públicas. A presença desses grupos nos conselhos e conferências de saúde é, portanto, ato político de reparação e de ampliação do conceito de direito à saúde.

No Conselho Nacional de Saúde, a representação étnica se traduz em vozes que afirmam a saúde como expressão da ancestralidade e da relação harmônica com a natureza. O reconhecimento de práticas tradicionais – como o uso de plantas medicinais, os rituais de cura e as práticas integrativas – demonstra que os saberes ancestrais não são resquícios do passado, mas formas contemporâneas de cuidado e resistência cultural.

Essas experiências inspiraram políticas públicas concretas, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Todas nasceram da pressão e da articulação de movimentos sociais e culturais que lutam por reconhecimento e equidade dentro do SUS. 

Referência: https://www.gov.br/conselho-nacional-de-saude/pt-br

O Conselho Nacional de Saúde e os desafios da democracia participativa

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) representa a culminância institucional dessa luta coletiva. Criado pela Lei nº 8.142/1990, O CNS é uma instância colegiada, deliberativa e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por formular, fiscalizar e acompanhar a execução das políticas públicas de saúde. Sua composição reflete o princípio da gestão participativa e do controle social, reunindo representantes de diferentes segmentos da sociedade: 50% de usuários do SUS, 25% de trabalhadores da saúde e 25% de gestores e prestadores de serviços. Entre as entidades representadas estão movimentos sociais, organizações de usuários, centrais sindicais, associações de moradores, entidades científicas e profissionais de saúde, instituições religiosas, organizações de povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais, além de órgãos governamentais como o Ministério da Saúde, o CONASS e o CONASEMS. O CNS funciona por meio de plenárias, comissões temáticas e câmaras técnicas, nas quais são debatidas e deliberadas pautas que vão desde o financiamento do SUS até políticas específicas de equidade, saúde mental, atenção básica, práticas integrativas e controle sanitário. Essa estrutura plural garante que o Conselho atue como espaço de pactuação e de voz coletiva, fortalecendo o caráter democrático e social das decisões em saúde no Brasil.

Além do CNS, um levantamento nacional apresentado pelo Conselho Nacional de Saúde revelou que o Brasil conta com 16 mil Conselhos Locais de Saúde (CLS) ativos em Unidades Básicas de Saúde (UBS), demonstrando o vigor da participação social no território. Esses conselhos, presentes em mais de um terço das UBS do país, funcionam como espaços de diálogo direto entre a comunidade e os serviços de saúde, permitindo que moradores, trabalhadores e gestores planejem juntos as ações de promoção e cuidado. Segundo o Censo Nacional das UBS, mais de 52% das unidades contam com o apoio dos Agentes Comunitários de Saúde na mobilização popular e quase metade envolve os cidadãos na identificação dos principais problemas sanitários do território — o que reforça o papel estratégico dos CLS na democratização da gestão e no fortalecimento do SUS.

Os movimentos sociais e as representações étnicas na saúde não são apenas atores complementares: são o coração político e simbólico do SUS. Eles mantêm viva a ideia de que a saúde é um direito conquistado coletivamente e um campo de luta contra todas as formas de exclusão.

Ao incluir povos e saberes historicamente silenciados, a participação social redefine o próprio conceito de cuidado — que deixa de ser um ato técnico e passa a ser um ato de reconhecimento, de pertencimento e de justiça social.

O Conselho Nacional de Saúde, enquanto instância maior desse processo, é um espaço de memória e futuro: memória das lutas populares que o fundaram e futuro das políticas que dele emergem. Reforçar sua autonomia, representatividade e capilaridade é garantir que o SUS continue a ser um projeto civilizatório, enraizado na pluralidade de saberes, culturas e modos de vida que formam o povo brasileiro.

Referências 

  1. Martins PC. Conselhos de saúde e a participação social no Brasil. Physis: Rev Saúde Coletiva. 2008;18(1):77-103.
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  5. Temoteo-da-Silva B. Análise política da atuação do Conselho Nacional de Saúde. Interface (Botucatu). 2022;26:e210802.
  6. Ministério da Saúde (BR). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília: MS; 2017.
  7. Martinez MG, Kohler JC. Civil society participation in the health system: the case of Brazil’s Health Councils. Health Policy Plan. 2016;31(8):1096-1105.
  8. Conselho Nacional de Saúde. Relatório de Gestão 2023-2024. Brasília: CNS; 2024.

A força da participação social no direito à saúde