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Biodiversidade e sustentabilidade no Brasil: o potencial estratégico das plantas medicinais

O Brasil é internacionalmente reconhecido por abrigar uma das maiores biodiversidades do planeta, distribuída entre biomas de elevada singularidade ecológica, tais como a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga, o Pantanal e o Pampa. Essa riqueza natural, que compreende mais de 45 mil espécies vegetais descritas, representa um patrimônio estratégico de valor incalculável para o desenvolvimento sustentável, científico e tecnológico do País. A diversidade biológica brasileira sustenta ecossistemas essenciais à vida e à economia, prestando serviços ambientais como regulação climática, proteção de nascentes, polinização, equilíbrio de solos e provisão de recursos genéticos de interesse social, econômico e terapêutico.

No contexto dessa riqueza, as plantas medicinais constituem um eixo prioritário de integração entre conservação da natureza, inovação científica e valorização dos conhecimentos tradicionais. Desde os períodos pré-coloniais, os povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas e ribeirinhas vêm acumulando e transmitindo saberes sobre o uso terapêutico da flora nativa, conformando um acervo de conhecimento tradicional associado de extrema relevância para as políticas públicas de saúde, ciência e meio ambiente. Tais saberes, reconhecidos e valorizados pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (PNPIC) e pela Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e por diversos programas de bioeconomia e desenvolvimento regional, constituem uma base viva de inovação e soberania nacional sobre o uso sustentável dos recursos naturais.

A biodiversidade brasileira, além de expressiva, é portadora de elevado potencial para a geração de insumos farmacêuticos, cosméticos e fitoterápicos. Estimativas recentes indicam que o País concentra aproximadamente 20% de todas as espécies vegetais conhecidas no planeta. Entretanto, uma parte significativa dessas espécies ainda não foi devidamente estudada quanto às suas propriedades químicas, farmacológicas ou ecológicas. Regiões como a Amazônia, o Cerrado e a Caatinga abrigam uma diversidade ainda subexplorada, com inúmeras espécies de uso medicinal documentado apenas em registros orais e práticas tradicionais. A conservação desses biomas é, portanto, condição indispensável para assegurar a continuidade das cadeias de conhecimento e inovação derivadas da flora brasileira.

Referência: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade-e-biomas

Embora o uso popular de plantas medicinais esteja amplamente disseminado, o campo científico enfrenta o desafio de ampliar a validação experimental e clínica dessas espécies. Levantamentos recentes demonstram que apenas uma fração das plantas tradicionalmente utilizadas possui comprovação científica robusta. Pesquisas conduzidas por instituições nacionais de referência, em parceria com universidades e centros internacionais, vêm identificando propriedades anti-inflamatórias, antimicrobianas, antioxidantes e cicatrizantes em espécies nativas de diferentes regiões do País. As famílias botânicas Fabaceae, Asteraceae e Lamiaceae destacam-se pelo número de compostos bioativos já identificados e testados. Tais avanços reforçam a necessidade de continuidade dos investimentos em pesquisa aplicada e biotecnologia, como vetores estratégicos de fortalecimento da bioeconomia nacional.

Entretanto, a transformação dessa riqueza natural em inovação tecnológica e desenvolvimento sustentável ainda é limitada. Apesar do expressivo patrimônio biológico e do conhecimento tradicional acumulado, o Brasil tem participação reduzida na produção global de medicamentos e produtos naturais de base biológica. Essa lacuna decorre, em grande medida, da insuficiência de políticas de incentivo, da descontinuidade de investimentos, da escassez de infraestrutura laboratorial e da complexidade regulatória associada ao acesso e à exploração do patrimônio genético. Tais desafios evidenciam a necessidade de maior articulação entre os setores de meio ambiente, saúde, ciência e tecnologia, de modo a garantir um ambiente institucional favorável à pesquisa e à inovação.

O marco legal que regula o acesso e o uso sustentável do patrimônio genético brasileiro constitui um instrumento essencial para a conciliação entre a conservação ambiental, a pesquisa científica e a repartição justa e equitativa de benefícios. A Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, e seu regulamento — o Decreto nº 8.772, de 11 de maio de 2016 — estabelecem diretrizes para o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, bem como para a repartição de benefícios resultantes de sua utilização. Esse arcabouço jurídico criou o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen) e instituiu o Comitê de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), responsável por coordenar e deliberar sobre as políticas de gestão, fiscalização e normatização do setor.

O CGen atua como instância colegiada, de caráter interministerial, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, e é composto por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil. Sua função é garantir que o uso do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais ocorra em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial o Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios Derivados de sua Utilização, sob a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Entre suas atribuições estão a elaboração de normas complementares, a análise de pedidos de acesso, o acompanhamento de projetos de bioprospecção e o fomento à transparência e à rastreabilidade das pesquisas realizadas com recursos genéticos

 

Referência: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/bioeconomia/patrimonio-genetico/conselho-de-gestao-do-patrimonio-genetico-cgen-1nacionais.

Apesar dos avanços alcançados com a consolidação do SisGen e das normativas complementares, o processo de implementação ainda apresenta desafios significativos. A limitação de recursos financeiros e humanos, a sobreposição de competências institucionais e a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de fiscalização e monitoramento são aspectos que demandam fortalecimento institucional. Além disso, persistem dificuldades operacionais que afetam o registro de projetos de pesquisa e o cumprimento das exigências de repartição de benefícios, especialmente no caso de pequenas empresas e instituições públicas de ensino e pesquisa. Nesse contexto, é fundamental que as ações de fiscalização sejam acompanhadas por medidas de apoio técnico e capacitação, promovendo o equilíbrio entre a segurança jurídica, o incentivo à pesquisa e a proteção dos direitos das comunidades detentoras de saberes tradicionais.

O acesso ao patrimônio genético brasileiro não deve ser interpretado como um obstáculo, mas como um instrumento de soberania e de gestão sustentável dos recursos nacionais. A regulamentação existente busca assegurar que os benefícios econômicos, tecnológicos e sociais resultantes da utilização desses recursos sejam revertidos em prol da conservação da biodiversidade e do bem-estar coletivo. A repartição justa e equitativa de benefícios constitui, portanto, um princípio estruturante das políticas públicas voltadas à bioeconomia, à inovação e à valorização dos conhecimentos tradicionais. É imperativo, assim, que o Estado brasileiro continue a fortalecer os mecanismos institucionais de governança e que estimule parcerias intersetoriais voltadas à sustentabilidade e à inclusão social.

No campo da sustentabilidade, o uso racional e responsável das plantas medicinais deve ser orientado por princípios de manejo ecológico, conservação da diversidade genética e respeito às práticas culturais das comunidades locais. A coleta e o cultivo de espécies devem observar normas técnicas que evitem a sobreexploração e assegurem a regeneração natural dos ecossistemas. O fomento à produção comunitária, cooperativa ou familiar de plantas medicinais, aliado à certificação de origem e à rastreabilidade dos produtos, constitui uma estratégia eficaz para reduzir a pressão sobre populações silvestres e gerar alternativas de renda sustentável. De igual modo, o incentivo à economia circular e ao aproveitamento integral dos recursos naturais — incluindo subprodutos e resíduos de processos produtivos — contribui para o fortalecimento de cadeias produtivas locais e regionais.

A pesquisa científica e tecnológica tem papel determinante na consolidação de um modelo de desenvolvimento que concilie conservação e inovação. A integração entre as áreas de biologia, química, farmacologia, engenharia e ciências sociais é essencial para a geração de conhecimento e o aprimoramento de tecnologias voltadas à produção de fitoterápicos, cosméticos naturais e bioinsumos. O fortalecimento da infraestrutura de pesquisa, o investimento em formação de recursos humanos qualificados e a ampliação de parcerias público-privadas são medidas prioritárias para a consolidação de uma bioeconomia baseada em evidências científicas e comprometida com a sustentabilidade ambiental e social.

A conservação da biodiversidade e a valorização das plantas medicinais demandam, portanto, políticas públicas contínuas, integradas e territorialmente articuladas. Iniciativas locais e regionais — especialmente em biomas como a Amazônia, o Cerrado e a Caatinga — demonstram que é possível aliar o uso sustentável à geração de conhecimento e à inclusão socioeconômica. Tais experiências evidenciam que a biodiversidade brasileira pode constituir um eixo estratégico para o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis, desde que sustentada por ações coordenadas entre o Estado, a comunidade científica e a sociedade civil organizada.

O fortalecimento do CGen, a consolidação do SisGen, a ampliação das políticas de incentivo à pesquisa e o apoio às comunidades guardiãs da floresta e da biodiversidade são prioridades para a consolidação de um modelo de desenvolvimento sustentável, ético e inclusivo. O Brasil detém condições ímpares para se afirmar como liderança mundial na transição para uma economia verde, pautada na sustentabilidade, na inovação e na justiça socioambiental. As plantas medicinais, como expressão da integração entre ciência, natureza e cultura, simbolizam esse compromisso e representam uma das chaves para a construção de um futuro equilibrado entre o desenvolvimento humano e a conservação da vida em todas as suas formas.